Entenda como o pagamento da bonificação por volume a agências publicitárias não só aumenta o montante de dinheiro público repassado para veículos como a Globo, como também favorece a corrupção
Ronaldo da Silva Mota
Especial para o BSM
Considerada ilegal em diversos países, mas ainda em vigor no Brasil, a bonificação por volume (BV) foi consolidada no governo Lula por meio de lei e segue garantindo o poder a grupos midiáticos independente de sua audiência. Funciona assim: veículos de comunicação como a Globo, por exemplo, pagam um valor bônus — como uma espécie de "premiação" — a agências publicitárias, que, em troca, entregam anúncios de seus clientes. O valor é desconhecido e chega a ser inclusive protegido por sigilo quando se tratam de clientes governamentais.
A prática, portanto, não só serve para encarecer a publicidade estatal como também dificulta a negociação dos valores de propaganda, aumentando significativamente o valor de dinheiro público repassado aos grupos de mídia. Reportagem do BSM publicada neste sábado (11) mostrou como o presidente Jair Bolsonaro, antes preocupado com a BV, acabou se "esquecendo" do assunto. Nesse novo texto, nosso jornal mostra como o bônus foi amplamente utilizado no Mensalão.
Como o esquema funcionava
Em junho de 2005, o deputado federal Roberto Jefferson declarou à Folha de São Paulo que o PT pagava mensalmente deputados para que votassem favoravelmente aos projetos de interesse do Poder Executivo. Segundo ele, o dinheiro sujo provinha de orçamento de publicidade de empresas estatais por meio de uma agência de publicidade de Marcos Valério.
A coisa funcionava, basicamente, do seguinte modo: a agência de publicidade recebia recursos das empresas públicas, firmava contrato com veículos de comunicação e recebia o tal “bônus de volume” (BV), valores aos quais a agência teria direito pelo volume total de serviços contratados por ela junto aos veículos de mídia. Nessa brincadeira, a agencia publicitária de Marcos Valério, a DNA Propaganda, abocanhou R$ 2.923.686,15 de BV e repassou por debaixo dos panos R$ 326.660,67 a Henrique Pizzolato, então Diretor de Marketing do Branco do Brasil (BB).
Joaquim Babosa, então ministro do STF e relator da Ação Penal 470, indicava a fraude apontado o contrato entre a DNA Propaganda e o Banco do Brasil, onde estaria previsto que os valores do tal bônus de volume deveria ser repassado ao banco e não para a conta particular do diretor de marketing do BB e os deputados da base “azeitada”...
O curioso é que, em 2010, antes do termino do julgamento da Ação Penal 470 e ainda no governo Lula, foi aprovada uma lei no Congresso Nacional, a Lei 12.232/10 que dispõe sobre as normas para contratação de serviços de publicidade, onde se define que:
- Serviços de publicidade para a administração pública devem ser contratados necessariamente por meio de agências de publicidade (art. 1º).
- Essas agências precisam apresentar certificado fornecido pela CENP (Conselho Executivo das Normas Padrão, entidade sem fins lucrativos) ou por entidade equivalente (art. 4º, § 1º), atualmente inexistente.
- Incentivos (vulgo BV) concedidos por veículos de comunicação às agências de publicidade, “para todos os fins de direito”, são receita das agências (art. 18º).
E tudo isso fica mais curioso ainda quando a defesa de Marcos Valério recorre a essa lei para provar que não houve crime na apropriação dos quase R$ 3 milhões pela DNA Propaganda. Contudo, graças a uma cláusula contratual, o ministro Joaquim Barbosa demonstrou a evidente falcatrua e condenou Marcos Valério.
O tempo passou...
Em janeiro de 2021, vimos o rompimento entre a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) e o Conselho Executivo das Normas Padrão (CENP). Ora, vale salientar que a ABA foi simplesmente uma das fundadoras do CENP. Segundo Meio&Mensagem, a ABA pulou fora do barco da CENP porque “não se sente representada mais no CENP” e considera essa ruptura apenas como “uma necessária evolução”.
Nelcina Tropardi e Sandra Martinelli, respectivamente Presidente da ABA e Presidente Executiva da ABA, por ocasião da inauguração de sua sede própria e lançamento do Anuário ABA 2021, afirmaram ao BSM que a desfiliação da ABA do CENP se deu em função de “divergências com a atual governança do CENP”. Nenhuma delas quis entrar em detalhes, mas questionadas pelo BSM sobre um ponto específico desta divergência, elas fizeram menção às “Normas Padrão” e ao BV. Afirmaram que não são contra o BV em si, mas sim a favor da transparência de todo o processo que envolve as relações entre marcas e suas agências.
Outro ponto de descontentamento comentado pelas executivas foi o fato do CENP pretender tratar diferentemente anunciantes privados de anunciantes públicos no quesito “anexo B” (remuneração de agências).Foi nesse sentido que a ABA lançou, em 23 de setembro, o Movimento em prol das boas práticas do mercado publicitário brasileiro.
De qualquer modo, essa pendenga entre a ABA e a CENP já vem de longe. Segundo Meio&Mensagem, já em 2015, a ABA acionou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que reabriu um processo administrativo para investigar “supostas condutas anticompetitivas” praticadas pelo CENP.
E realmente a coisa é séria. Em dezembro de 2020, o CADE instaurou um inquérito para apurar indícios de condutas anticompetitivas da Rede Globo em seus contratos com agências de publicidade. Segundo o CADE, dentre outras coisas, o adiantamento de bonificação (BV) praticado pela Rede Globo promove a dependência econômica das agências com a emissora:
“Ao entregar antecipadamente os valores de bonificação, a emissora torna-se credora da agência, que, portanto, deverá assegurar que seus futuros trabalhos sejam suficientes para garantir percentual de bonificação equivalente ao já recebido”.
É claro que nesse jogo os critérios de mídia técnica, que devem ter prioridade no momento de se contratar publicidade, vão para o brejo e a lei do mais forte vigora...
Nesse sentido, Adriano Silva, em seu artigo A Bonificação de Volume e a hegemonia do meio TV no Brasil, fez a seguinte constatação:
“A TV Globo é disparada a maior pagadora de BV do mercado brasileiro. “O BV da TV Globo é o maior vendedor do país”, me disse uma vez o presidente de outra grande empresa de mídia, que também oferece BV ao mercado. Isso ajuda a explicar por que um programa como o Fantástico, por exemplo, perdeu quase 40% de sua audiência na última década e meia e o preço das inserções em seus intervalos comerciais, lotados de anúncios, continua aumentando progressivamente.”.
Não há dúvida de que o BV, como é utilizado atualmente pelos grandes veículos de mídia, tende a gerar uma distorção no mercado publicitário em detrimento dos anunciantes.
A lei
Mas há outro nó da questão que se encontra exatamente na Lei 12.232/10. Isso porque, os grandes anunciantes privados não se submetem ao “desconto padrão de agência”, definido pelas “Normas Padrão” do CENP que significa ao menos 20% (vinte por cento) sobre o valor dos negócios que a agência encaminha ao veículo de comunicação por ordem e conta de seus clientes. Eles têm condição de fugir das distorções do mercado publicitário, mas milhares de outros anunciantes privados menores não o fazem e os anunciantes públicos são obrigados, pela Lei 12.232/10, a se submeter.
Segundo Adriano Silva, “há muitos anos, por pressão dos anunciantes e pelo acirramento da competição entre as próprias agências, outros modelos de remuneração emergiram. Algumas agências passaram a receber a comissão a que tem direito – hoje, entre os grandes anunciantes, pratica-se de 3% a 5% sobre a verba a ser investida – em doze prestações, na forma de um fee fixo mensal.”.
Esses valores são agressivamente negociados pelos grandes anunciantes privados, sem contar que o contrato não sai do papel sem uma avaliação técnica criteriosa dos departamentos de marketing dessas empresas, garantindo assim melhores preços e maior eficiência na divulgação de seus produtos.
Por outro lado, nas atuais condições, os anunciantes públicos gastam mais que os privados e gastam mal. Eles precisam contratar agências de publicidade, agências credenciadas no CENP e, portanto, precisam pagar “o desconto padrão de agência”, além de não haver qualquer transparência sobre a negociação entre veículos de comunicação e agências publicitárias referente ao BV. Some-se a isso, claro, o fato de que o atual modelo do mercado publicitário, no aspecto modelado pela Lei 12.232/10, garante grandes margens para negociatas criminosas envolvendo dinheiro público.
Basicamente, o anunciante público paga ao menos 20% dos seus investimentos à agência de publicidade e sabe-se lá quanto mais de BV que é negociado entre veículos de mídia e agências de publicidade sobre os eventuais 80% restantes de seu investimento inicial!
Bom, e como tudo isso é injusto, sem transparência e foge muito da realidade do mercado, voilá: temos um campo aberto e convidativo para o balcão de negócios obscuros.
O Banco do Brasil
Para efeito de ilustração, peguemos o caso do Banco do Brasil. Em 2019 e 2020, o Banco do Brasil gastou aproximadamente a bagatela de 557 milhões reais e 616 milhões de reais em publicidade respectivamente, o que lhe garantiu destaque no ranking dos 10 maiores anunciantes do Brasil em 2020. Ora, isso significa que o Banco do Brasil entre 2019 e 2020 gastou praticamente 235 milhões de reais apenas com o desconto padrão de agência (20%) e sabe-se lá quantos milhões mais em BV...
Bom, caros leitores, falamos apenas do Banco do Brasil. Agora somem ao BB o incrível número de todas as instituições que estão, de algum modo, sob o guarda-chuva societário do Estado, desde das federais, passando pelas estaduais até as municipais; multipliquem isso por milhões em desconto padrão de agência e mais milhões indefinidos em BV, assim você poderá deduzir o tamanho do ralo necessário para escoar essa fabulosa vasão de dinheiro público.
Brasil Sem Medo