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"Só no Brasil, o principal candidato da oposição para 2022 é um ladrão condenado pela Justiça", Por J.R. Guzzo



No tempo em que o patriotismo ainda era um sentimento lícito, e o sujeito não precisava se esconder para dizer que gostava do Brasil e de ser brasileiro, ninguém achava nada de mais que um professor de ginásio recomendasse a leitura de algumas páginas de “Porque Me Ufano do Meu País”, do conde Afonso Celso. Hoje em dia, é claro, não passa pela cabeça de ninguém fazer algo parecido — principalmente numa dessas escolas que cobram mensalidades de R$ 10 mil, exigem a “inclusão social” e chamam alunos e alunas de “alunes”. O infeliz que citar um texto assim na sala de aula vai ser posto no olho da rua, sob o aplauso dos pais, acusado de vício fascista, direitista ou até bolsonarista. Já imaginaram? Melhor não imaginar nada. Tudo bem: mesmo naquela época de inocência, o texto já era visto como um belo exagero em matéria de ingenuidade. Nos dias de hoje, porém, o buraco é muitíssimo mais embaixo. O problema não é só o risco de parecer bobo, ou de ser denunciado pela prática de crime ideológico. Com o país do jeito que está, até o patriota mais otimista não vê motivo para se orgulhar de nada — não em qualquer coisa que tenha algo a ver com a maior parte da vida pública nacional. Orgulhar-se de quê? Ao contrário. Onde se dizia que o Brasil era um lugar único no mundo, porque nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais vida e nossa vida mais amores, hoje se diz: “Só no Brasil é possível um negócio desses”.

Você sabe muito bem o que significa esse “só no Brasil”, e que “negócios” são esses. Significa que o Brasil é o único país, entre outros mil (ou pelo menos os 200 e tantos que estão na ONU), onde acontece um certo tipo de aberração em modo extremo — tão extremo que não é possível, segundo a lógica comum, encontrar nada de equivalente em qualquer outro ponto do planeta. A lista desses despropósitos é uma obra em aberto. Cada um pode fazer a sua, com quantos itens quiser — e a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo fora do horário de expediente público, a relação dos tops de linha pode ser aumentada por uma alucinação novinha em folha. Feita essa ressalva, segue abaixo, com data de hoje, o pretinho básico, estritamente básico, em termos de “só no Brasil”.

1) O Brasil é o único país no mundo onde há uma CPI “para investigar a Covid” na qual o presidente, um Omar Aziz, tem a seguinte anotação em sua folha corrida: foi investigado pela Polícia Federal por corrupção XXXXL-plus na área de saúde. (Não é piada; é o presidente mesmo.) Mais: sua mulher foi para a cadeia acusada de meter a mão em dinheiro público, também em questões de saúde. (Também não é piada; é a mulher dele mesmo, e foi mesmo para a cadeia.) Mais: além da mulher, nada menos do que três irmãos do homem foram presos nesse mesmo rapa e, mais uma vez, não é piada. Mais: dos 81 senadores que representam as 27 unidades da Federação, o escolhido para presidir as investigações vem, justamente, do Amazonas, o lugar onde mais se roubou no Brasil, e possivelmente no mundo, por causa das despesas públicas com a Covid. A PF, por sinal, acaba de realizar busca e apreensão na casa e nos escritórios do atual governador do Estado, Wilson Lima, em mais uma operação para combater a ladroagem na compra de respiradores; um dos investigados, um dono de hospital a quem ele deu um contrato, recebeu a polícia à bala.

Não gostou do presidente? Espere, então, pelo relator. Trata-se de ninguém menos que Renan Calheiros — o “Atleta” da lista de políticos corruptos registrados nos computadores do departamento de roubalheira da empreiteira Odebrecht, e um dos senadores mais encrencados com a Justiça criminal em todo o sistema solar. A presença de Renan nesse picadeiro é ainda mais inexplicável que a de Omar; do outro, pelo menos, ninguém tinha ouvido falar até a CPI. Mas o relator já está nessa vida há 30 anos. Como é possível que ele investigue alguma coisa? Como é possível que dezenas de pessoas que jamais tiveram o mínimo problema com a polícia, ou que jamais foram processadas por alguma coisa na Justiça penal, sejam interrogadas por alguém com a sua ficha? Renan, no papel misto de delegado de polícia, promotor e juiz, frequenta todos os dias as primeiras páginas e horários nobres da mídia como se fosse um Santo Tomás de Aquino, pelo menos. Mas ele é apenas o Renan Calheiros de sempre, que no momento responde a nove processos por corrupção. (Não são dez, nem onze, nem doze: as “agências de checagem de fake news” já fizeram questão de dizer que tudo isso é notícia falsa — são só nove processos penais no lombo, nem um a mais. Ah, bom. Ainda bem que avisaram.)

2) O Brasil é o único país no mundo onde o presidente da República é acusado de ser o responsável por quase 470 mil mortes causadas até agora pela Covid, pelo que informam os atestados de óbito. No resto do mundo já morreram, até agora, cerca de 3,5 milhões de pessoas; segundo a oposição, os comunicadores e as classes intelectuais brasileiras, desses 3,5 milhões, por volta de 3,1 milhões não são culpa de ninguém. Só os mortos do Brasil são culpa do governo.

3) O Brasil é o único país no mundo onde uma campanha de vacinação que já aplicou perto de 70 milhões de doses em pouco mais de três meses é considerada um fracasso pelos cientistas de oposição — sim, porque no Brasil há tipos de ciência diferentes, a ciência boa e a ciência ruim, conforme a opinião política do cientista. Só três países, em todo o planeta, vacinaram mais que o Brasil. Dois deles são a China e a Índia, os maiores produtores de vacinas do mundo; além disso, a China tem 1,44 bilhão de habitantes, e a Índia, 1,38 bilhão. O outro são os Estados Unidos, país que tem um PIB de US$ 21 trilhões, mais de dez vezes superior ao brasileiro, e também está entre os maiores exportadores; o “auxílio emergencial”, lá, equivale a mais de R$ 6 mil. Por que, então, o Brasil fracassou? “Vacinas para todos”, pede oficialmente a oposição. O país, na opinião da Frente Nacional Pró-Vírus, já deveria ter vacinado a população inteira, no mínimo — mesmo sem produzir aqui um único frasco de vacina, e depender 100% da importação de matéria-prima estrangeira. Os atrasos nas exportações de insumo por parte da China não são culpa da China — são culpa “do Bolsonaro”.

Há o argumento, também único, de que o Brasil vacinou apenas um terço da sua população total até agora — e a Inglaterra, ou Israel, já vacinou quase todo mundo. A Inglaterra tem um quarto da população do Brasil, além de ser um dos países que inventaram a vacina; Israel, então, não chega a ter 10 milhões de habitantes, e sua área é um pouco maior que a ocupada pelo território de Sergipe. Faça as suas contas.

4) O Brasil é o único país no mundo onde o principal candidato da oposição, do centro moderado e dos defensores da democracia às eleições para presidente de 2022 é um ladrão condenado legalmente pela Justiça, em terceira e última instância, por nove juízes diferentes, por ter praticado os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. A mídia, o mundo político e os institutos de “pesquisa de intenção de voto” também já decidiram que ele está eleito, quase um ano e meio antes da eleição —  escolhe-se, no momento, o seu ministério, e discute-se a sério qual o cargo que vai ser ocupado pela ex-presidente Dilma Rousseff, que foi, ela própria, despejada do Palácio do Planalto por fraude contábil cinco anos atrás.

O Brasil, como outros países, tem uma lei que proíbe réus condenados pela Justiça penal de ocupar cargos públicos. Mas só aqui se consegue manter uma lei em vigor e, ao mesmo tempo, permitir que os interessados não façam nada do que está escrito nela — a saída, outra solução estritamente nacional, é dizer que o réu foi julgado num lugar e deveria ter sido julgado em outro. Nem é preciso inventar que ele não cometeu os crimes pelos quais foi condenado, ou perder tempo com qualquer fato que envolva a discussão de culpa ou de inocência: basta dizer que erraram de “foro”.

5) O Brasil é o único país no mundo onde um ministro do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de Justiça da nação — no caso, o ministro Antonio Dias Toffoli —, reúne em si próprio, e ao mesmo tempo, as seguintes condições:

  • Foi reprovado duas vezes — isso mesmo: duas vezes seguidas — no concurso público para juiz de direito, o que significa o seguinte, em português claro: ele não está autorizado a julgar nem uma ação de despejo na comarca de Arroio dos Ratos, por falta de habilitação profissional, mas pode dar sentença sobre qualquer coisa no tribunal máximo do Brasil;
  • Recebia, e só parou de receber depois que descobriram, uma mesada de R$ 100 mil da própria mulher, que é advogada num escritório da capital federal com causas em julgamento no tribunal onde o marido dá expediente;
  • Teve reformas na sua casa em Brasília, no valor de R$ 15 mil, pagas por uma empreiteira de obras públicas, quando já era ministro do STF;
  • É acusado de receber propinas no valor de R$ 4 milhões e, no julgamento que o STF fez do caso — sobre a validade da delação feita contra ele —, não achou nada de mais em julgar a si próprio. Também não achou nada de esquisito em declarar a delação inválida e, com isso, julgar-se inocente. Salvo o ministro Marco Aurélio, nenhum dos seus dez colegas de Corte Suprema imaginou que Toffoli deveria abster-se do julgamento. Ficamos assim, então. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pode ser investigado já. O presidente da República tem cinco dias para explicar por que não usa máscara. O governo tem três anos para resolver o problema das penitenciárias no Brasil — tudo por decisão do STF. E Toffoli? Nele é proibido mexer.

6) O Brasil é o único país no mundo onde as pessoas existem ou deixam de existir, fisicamente, conforme a percepção visual, ética e política dos jornalistas. “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro”, anunciaram alguns relatos sobre manifestações públicas no último fim de semana. Deveria ter sido noticiado, então, que “milhares saem às ruas a favor de Bolsonaro”, quando aconteceu a mesma coisa no fim de semana anterior, certo? Errado. Fotos, vídeos e testemunhos pessoais atestam a presença de gente nas duas ocasiões. Mas, segundo a mídia militante, há duas categorias de gente, como no caso dos cientistas — a gente que existe e a gente que não existe. A gente de quem você não gosta não existe.


Por J.R. Guzzo / Jovem Pan