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Homem que fazia festas religiosas para crianças abusou de meninas por 20 anos

A técnica em enfermagem Ana Paula Fernandes, 25, nasceu em Várzea da Palma, uma pequena cidade de Minas Gerais, cerca de 300km da capital, Belo Horizonte, e com pouco menos de 40 mil habitantes atualmente. 

A mulher, simpática, sempre bem-arrumada e sorridente nas fotos nas redes sociais, compartilhou com Marie Claire a história que marcou sua vida para sempre.

Ana Paula foi responsável por denunciar um homem por abuso sexual de meninas em sua cidade natal. Ela se manifestou em 2019 nas redes sociais, após realizar a denúncia, o que impulsionou uma reação em cadeia de outras mulheres vítimas de seu algoz, com relatos que vão até 2018.

Oficialmente, são depoimentos de 16 testemunhas e 14 mulheres e meninas que declaram ter sofrido abusos de Dinamá Pereira de Resende, 54. Ele era responsável por diversos eventos infantis na cidade. Professor de dança, também liderava reuniões religiosas em casa, com meninas, e foi até candidato a vereador em 2004.

A história de Ana Paula foi interrompida em 2004, com apenas 9 anos, quando, segundo ela, começaram os abusos do professor de dança que alegremente a acolheu no grupo particular com pequenas dançarinas escolhidas à dedo por ele. “Em todo evento com crianças, ele estava", lembra ela. "Ele foi até a escola onde eu estudava para ensaiar com a gente a dança da quadrilha da festa junina. Ele ia dizendo: ‘Você dança bem, aprendeu os passos rápido. Tem um grupo de dança aqui na cidade que faz apresentações nas cidades vizinhas, participações em igrejas’. Fiquei louca para poder participar também”, descreve Ana Paula.

Ana Paula relata que muitas dessas apresentações paralelas às da escola não aconteciam, apesar de semanas de ensaios. “A gente ensaiava sem saber qual era a apresentação. Quando chegava a época de se apresentar, surgia algum problema e a gente não ia mais", diz ela. "Nesses ensaios, ele fazia exercícios de alongamento. Quando a gente analisa hoje, vê que eram abusivos. Tinha que abrir a perna na posição de borboleta, encostada na parede, e ele ajudava a esticar, mas, nisso, passava a mão na gente. Nós achávamos que fazia parte do alongamento”, conta.

A técnica de enfermagem descreve Dinamá como um homem prestativo, que conversava com todo mundo, inclusive com os pais e as mães das crianças que eram suas alunas.

Abuso
Segundo Ana Paula, quando concorreu a vereador, Dinamá reuniu algumas crianças para ajudarem a distribuir santinhos durante a campanha. “Eu o acompanhei e, nesse dia, aconteceu o abuso", lembra ela. "Ele falou que tínhamos que voltar para a casa dele, porque os santinhos estavam acabando. Eu ainda o questionei, porque ele tinha vários na mão. Foi tudo bem planejado, Dinamá sabia que não teria ninguém na casa dele. Ele era casado e, depois, descobri que a enteada também o denunciou. Dinamá me levou para o quarto e eu comecei a chorar, reclamei de dor e, então, ele me deixou ir embora.” Ana Paula conta que logo após o episódio, começaram as férias escolares e ela passou dois meses viajando, como de costume. Quando as aulas retornaram, a mãe e ela mudaram de cidade, e Ana Paula não teve mais contato com o ex-professor de dança.

“Quando lembrava do que tinha acontecido, tentava pensar em outra coisa", diz Ana Paula. "Fiquei com muito medo. Não tinha percebido que ele fazia isso com outras meninas. Achei que era só comigo. Pensei que ninguém acreditaria em mim, me culpava bastante.”

Denúncia


Por 16 anos, Ana Paula diz ter sofrido em silêncio. Adulta, viveu um relacionamento abusivo, do qual engravidou dos três filhos, um de 9, outro de 5 e o caçula, de 3 anos. “Apanhei calada. Via traição calada. Tudo calada", desabafa. "Eu tinha dois filhos para criar, trabalhava num mercado. Fui estudar e, quando finalmente consegui me separar, descobri que estava grávida do mais novo. Imagina, três filhos e sozinha? Meu ex-marido me colocava abaixo de zero. Para ele, eu não valia nada. Me falava que eu era a pessoa mais horrorosa do mundo e a mais burra."

Ana Paula explica que em 2019, quando seu filho mais velho completou a mesma idade que ela tinha quando sofreu o abuso, ela decidiu procurar Dinamá nas redes sociais. “Encontrei o Facebook dele e, na foto de perfil, ele estava vestido de palhaço. Em outra foto, rodeado de crianças. Estavam enaltecendo ele nos comentários, dizendo que, graças a Dinamá, a cultura não ia morrer", descreve. "Achei um absurdo. Se as pessoas soubessem como ele faz para 'não deixar a cultura morrer', ninguém ia querer saber dele nunca mais. ‘Não deixa a cultura morrer’ sobre choro escondido, sofrimento velado, passada de mão escondida, e as pessoas ainda homenageando ele. Alguém tinha que fazer alguma coisa, alguém tinha que falar alguma coisa. Eu estava no limite”, conta.

 (Foto: Reprodução / Facebook)

Dinamá cercado de crianças (Foto: Reprodução / Facebook)

Ana Paula, então, telefonou para seu pai e falou sobre os abusos pela primeira vez. Cerca de dois meses depois, em outubro de 2019, ela viajou à Várzea da Palma e fez o boletim de ocorrência. Na infância, ela morava só com a mãe. “Evito falar sobre o assunto com ela porque penso que ela deva se sentir muito culpada. A responsável por aquela criança estava trabalhando o dia inteiro. Se ela não fosse trabalhar, quem ia? Independentemente, não é uma coisa que deve ser questionada. Não foi desleixo dela. A culpa é dele”, afirma.

Avalanche de respostas

Um dia após fazer o boletim de ocorrência contra Dinamá, Ana compartilhou a história em uma postagem nas redes sociais. Mesmo sem mencionar o nome do acusado, recebeu retorno imediato de diversas mulheres, perguntando se era dele que ela falava. “Criamos um grupo no WhatsApp e cada uma enviou o seu relato", diz ela. "Descobrimos que  ele agia da mesma forma, até nos detalhes. Quando ele pegava na gente, vinha com a mão trêmula. Uma mulher contou que ele foi lhe ensinar a pilotar uma moto e disse: ‘Ele passava a mão trêmula nojenta dele em mim’. E era assim mesmo”, conta.

Ela explica que, das vítimas que denunciaram Dinamá, muitas quase não tiveram coragem. No grupo e entre elas, conversaram muito para que as vítimas não sofressem caladas por medo ou vergonha de expor o caso.

“Tem uma ou outra vítima que vemos nitidamente que o impacto foi muito forte", diz Ana Paula. "A gente percebe o quanto a fala é sofrida. Por isso, formamos uma rede de apoio.” A técnica em enfermagem afirma que tinha medo de “passar por louca” ao fazer a postagem, mas contou a história mesmo assim, com a intenção de, ao menos, alertar os pais da cidade de Várzea da Palma. “Duas meninas, de 12, 13 anos, mandaram mensagem dizendo que participavam do grupo de dança dele e que não voltariam mais.”

Terapia

Segundo Ana Paula, guardar os acontecimentos durante mais de uma década foi uma decisão que teve consequências em sua saúde mental. Ela relata ter sofrido ataques de ansiedade e iniciou terapia há cerca de um mês. “Foi triste. Agora estou tomando antidepressivo e remédio para dormir”, conta.

Com ajuda médica, rede de apoio e a companhia do marido, com quem está casada há três anos, ela se mantém firme. “Percebi que tenho valor. Não sabia que eu poderia influenciar tanto na vida de outras pessoas. Mudei vidas de muitas crianças que poderiam sofrer o que sofri”, explica.

 

A advogada Ana Luiza França Santos, que representa 12 das vítimas, disse que, após a repercussão do caso, mais mulheres entraram em contato para prestar novos depoimentos. “As meninas estão sentindo a cultura do estupro na pele. Muitas pessoas aqui na cidade duvidam e questionam, querem saber por que demoraram para denunciar”, explica.

O caso

A investigação começou quando Ana Paula foi à delegacia no dia 18 de outubro de 2019 denunciar a violência sofrida quando criança. A Agência Pública de Jornalismo Investigativo foi quem primeiro teve acesso ao inquérito policial, finalizado em janeiro de 2020, que deu origem à ação penal que ainda corre na Justiça. Como os procedimentos incluem abusos recentes envolvendo menores de idade, o caso está em segredo. São depoimentos de 16 testemunhas e 14 mulheres e meninas que se declaram sobreviventes de violência sexual.

Segundo os depoimentos, Dinamá cometia crimes em diversos cenários: dentro das casas, no meio da rua e até no Centro Pastoral. Na igreja, ele criou a Liga Católica Mirim, em 1987, aos 17 anos. Lá, ele reunia crianças de 6 a 14 anos semanalmente. Durante festas juninas e outros feriados, era ele quem coreografava as danças das crianças nas escolas da região. As meninas que participavam do grupo dele, o “Dinamá Show”, eram chamadas de “Dinamitas”.

Segundo as investigações, o acusado se aproveitava da fé das família e da inocência das crianças para ganhar a confiança de todos. Alunas da mesma escola municipal em que Ana Paula estudou relatam ter sofrido abusos de Dinamá em 2018.

No inquérito consta que, após as denúncias, ele teria tentado destruir provas, relatando, por exemplo, o desaparecimento de seu computador. Há também no documento depoimentos que afirmam que Dinamá mantinha fotos pornográficas de crianças embaixo de seu colchão. Seriam imagens de meninas com cerca de 8 anos, tiradas por ele mesmo e também baixadas da internet.

Para a equipe policial envolvida nas investigações, há fatos mais do que suficientes para que Dinamá seja preso. “Não há dúvidas de que Dinamá cometeu estupro de vulnerável contra diversas crianças e adolescentes. Diante dessa realidade, sugerimos à vossa excelência o indiciamento de Dinamá Pereira de Resende.” Essa é a conclusão do inquérito policial, em 15 janeiro de 2020, de acordo com informações divulgadas pela Agência Pública. “Temos relatos idênticos com 20 anos de diferença de mulheres que não se conheciam. Algumas afirmam que, na época, nem sabiam que tinham sido abusadas e que isso só ficou claro com o amadurecimento delas”, afirma o delegado.

O pedido de prisão preventiva de Dinamá foi negado pelo juiz Pedro Fernandes Alonso Alves Pereira. Na decisão, de 19 de dezembro de 2019, ele alega que havia alternativas, não sendo necessária a prisão de forma preventiva. Segundo o documento, foi levado em consideração o fato de Dinamá ser réu primário, sem nunca haver cumprido afastamento disciplinar e, também, o tempo decorrido dos fatos. Foram aplicadas apenas medidas cautelares, estas válidas por 180 dias e prorrogadas por outros 180.

Dinamá foi proibido de mudar de endereço sem comunicação prévia à Justiça, de trabalhar em qualquer atividade pública com contato com crianças e adolescentes e de ter contato com as vítimas citadas nos autos e seus familiares. Em 27 de julho, o Ministério Público encaminhou proposta de ação penal em relação aos fatos envolvendo duas vítimas.

Marie Claire entrou em contato com o advogado do acusado, Santiago Átila Santiago, que respondeu: “Não posso me pronunciar por ser segredo de justiça, mas ele nega a autoria.”

 

Fonte: MARIE CLAIRE