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Apenas um filme sobre dança ou é sexualização de crianças?

Tivemos recentemente a polêmica sobre o caso da menina de 10 anos de idade que fez um aborto depois de engravidar do tio que a molestava desde os 6. Uma matéria da Joven Pan, publicada na última quinta-feira (20/08), traz outro caso com a seguinte manchete: Abuso infantil: ‘Meu tio pôs as mãos por dentro da minha roupa e começou a me acariciar’. Seguem trechos do relato da vítima.


“Aos nove anos, passei uma noite na casa dela (prima), quando fomos dormir, seu pai deitou com a gente.

Ela me pediu para não ficar ao lado dele na cama. No meio da madrugada, percebi que ele estava passando a mão por cima do meu corpo, como se estivesse me abraçando. Fechei os olhos porque fiquei com medo. Quando ele supôs que eu tinha dormido, colocou as mãos por dentro das minhas roupas e começou a me acariciar. Fui uma criança e adolescente problemática. Convivi com ele em todas as festas de família, como se nada tivesse acontecido. Hoje penso na filha dele e no porquê dela não querer dormir ao lado dele na cama. Não aconteceu só comigo.”

Será que, diante de uma realidade como essa, é momento de lançar um filme onde uma menina de 11 anos desobedece a família e rouba dinheiro para se juntar a um grupo de dança sensual? Pois é o que vai acontecer no próximo dia 9 de setembro, na Netflix. Inicialmente, a companhia de streaming divulgou a seguinte sinopse:

“Amy, de 11 anos, mora com a mãe, Mariam, e o irmão mais novo, esperando que o pai volte para a família vindo do Senegal. Amy é fascinada pela vizinha de espírito livre, Angélica, uma desobediente dançarina de um grupo que contrasta fortemente com os valores tradicionais profundamente arraigados de Mariam. Implacável pela reprovação brutal das garotas (do grupo de dança) e ansiosa para escapar da disfunção latente de sua família, Amy, por meio de uma consciência acesa de sua feminilidade crescente, impele o grupo a abraçar com entusiasmo uma rotina de dança cada vez mais sensual, despertando a esperança das garotas ao caminho do estrelato em um concurso de dança local.”

Pobre Amy...  vive sufocada tentando “escapar” de uma “disfunção latente de sua família”. Mas, qual seria a saída para uma vida de “espírito livre” como a da “desobediente” Angélica? Claro! “Abraçar com entusiasmo uma rotina de dança cada vez mais sensual”. Isso resolveria todos os problemas de Amy e até poderia servir de exemplo para outras garotas que vivem em famílias disfuncionais. Sensacional!

A imagem abaixo foi utilizada inicialmente na divulgação do filme “Cuties”.

Mas, depois de um abaixo-assinado com mais de 50 mil assinaturas e da má repercussão nas redes sociais, a Netflix mudou, tanto a foto, quanto a sinopse, que passaram a ser estas:

“Amy, 11, fica fascinada com uma equipe de dança “twerking”. Na esperança de se juntar (à equipe), começa a explorar sua feminilidade, desafiando as tradições de sua família.” Twerking significa “estilo de dança que curva e move a parte inferior do corpo e os quadris”, seria o equivalete ao nosso “rebolar”. E a foto de divulgação foi substituída por esta abaixo:

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Divulgação

O trailer do filme destaca, inclusive, uma fala da mãe de Amy, dizendo “agora você é uma mulher”. Seria para nos fazer esquecer de que ela tem apenas 11 anos? Não, garotas de 11 anos não são mulheres. Não, a solução para meninas que vivem em famílias disfuncionais não é juntar-se a um grupo de dança “cada vez mais sensual” para explorar a sua “feminilidade” e roubar dinheiro para se tornar popular e obter muitos likes nas redes sociais.

Veja o trailer:

É certo que surgirão pessoas dizendo que o filme ainda nem foi lançado para sabermos do que se trata. Pois bem, permita-me lembra-los de que o trailer, as imagens de divulgação e a sinopse têm a função de informar sobre os pontos principais de uma produção e, obviamente, a Netflix sabe muito bem como fazer isso. Portanto, o que o trailer destaca são os pontos principais da trama. O que não se sabe, obviamente, é o final, mas dá para perceber claramente como a imagem dessas meninas é explorada. Além do que, sabemos o quanto o cinema influencia a sociedade como um todo, não sejamos ingênuos...

Crianças de 11 anos deveriam ter o direito de serem crianças. Enquanto os adultos deveriam parar de agir feito crianças estúpidas e de se fazerem de desentendidos para agradar a turma do cancelamento.

Onde estão os grupos feministas para defender nossas meninas e evitar que elas sejam vistas apenas como corpos que rebolam? Onde está a turma do politicamente correto para se indignar com essa narrativa? Como sempre, o silêncio chega a ser ensurdecedor...

Autora

Patricia Lages é autora de 5 best-sellers sobre finanças pessoais e empreendedorismo e do blog Bolsa Blindada. É palestrante internacional e comentarista do JR Dinheiro, no Jornal da Record.