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"ISSO É BRINCAR COM DEUS". Peça censurada sobre Jesus travesti prega amor e respeito

Para os que entendem a religião como um caminho para a tolerância, a harmonia e a união dos povos, o monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, censurado em Jundiaí por um juiz que viu no texto da dramaturga escocesa Jo Clifford uma iniciativa “atentatória à dignidade da fé cristã”, carrega uma mensagem de viés espiritual.

Em pouco mais de uma hora de peça, um  Jesus que se assumiu mulher – “Vivia como um homem, a tantos séculos atrás” – relê passagens bíblicas, sempre chamando a atenção do público para aquilo que elas propõem ou que, pelo menos na opinião da britânica Jo Clifford, também ela uma transexual, deveriam propor: perdão, acolhimento e amor.


A criação do mundo narrada em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, é recontada com um discurso de empoderamento, para usar uma palavra cara às minorias. No princípio, era a escuridão. Depois, fez-se a luz, e cada um tem uma luz própria que precisa deixar brilhar.

Pouco depois, Jesus, que na montagem da diretora Natalia Mallo é vivido (ou melhor, vivida) pela atriz trans Renata Carvalho, lembra da máxima “Ama ao próximo como a ti mesmo”, e a confronta com uma cena de discriminação sofrida na rua por uma travesti.

A questão da discriminação retorna mais forte com o episódio da adúltera que é salva por Cristo da morte por apedrejamento – a passagem do Novo Testamento em que é dita a famosa frase, “Quem não tem pecado que atire a primeira pedra”. O texto de Clifford levanta a possibilidade de a adúltera ter na verdade reagido a um estupro ou a um relacionamento abusivo, e lembra outra fala conhecida de Jesus, aquela em que diz que, seja qual for o pecado que a mulher tenha cometido, não se vê melhor do que ela.

Essa é a levada da peça. A cada paráfrase bíblica, é repisada a ideia de que a religião representa respeito e compreensão, e de que viram a costas à Bíblia os que se voltam contra transexuais e homossexuais — que compõem a maioria da plateia. Não há discurso de ódio contra os que discriminam, mas um chamamento à pacificação, o tempo todo.

Em uma nova versão da parábola do filho pródigo, o filho, que se descobre transgênero, vira filha. Incapaz de aceitar a mudança, o pai expulsa a garota de casa, mas dá a ela um envelope de dinheiro para a sua sobrevivência. A menina, pródiga que é, gasta tudo em festas e vestidos Versace e Chanel. Ao se ver sem recursos e sem amigos – que a abandonaram quando ficou quebrada –, bate na porta de casa. O pai a recebe de volta, por amor, e faz uma festa de arromba com direito a música alta e champanhe.

O compromisso com a transmissão de uma determinada mensagem é tamanho que poderia ameaçar a qualidade artística do espetáculo. Mas Jo Clifford domina o ritmo do texto e insere mudanças repentinas de tom que, além de espanar o catecismo, garantem o humor. Depois de discursar sobre empatia e humildade ao salvar a adúltera do apedrejamento, Jesus vira para ela e diz, “Vem, amapoa”, fazendo uso de uma gíria tipicamente gay que é sinônimo de mulher.

Leve e ao mesmo tempo provocativo, com direito a um “Fora Temer” no final, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu merecia um tratamento melhor que o concedido pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior. Converter Jesus em um travesti, para Jo Clifford, não é uma forma de achincalhá-lo, mas de questionar e reforçar a ideia, presente na Bíblia, da sua onipresença – se está em todo lugar, por que não em um trans?

O juiz de Jundiaí, aliás, acabou dando visibilidade à peça. O monólogo, encenado mais de setenta vezes desde 2016, teve sessão lotada nesta quarta-feira no Sesc Santo Amaro, onde volta a ser representado nesta quinta-feira, antes de seguir para outros palcos. “Nosso trabalho não vai parar jamais”, disse a diretora, Natalia Mallo, ao fim da apresentação desta quarta.


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